segunda-feira, 5 de abril de 2010

Caixa Vazia

O relógio no cantinho da tela indica a hora, mas desvio o olhar do computador. Briguei com o tempo. Do passado eu lembro, mas o futuro “a Deus pertence”. Antes, desejo saber o que há no presente. Lentamente, desato a fita que envolve o embrulho e descubro o que para mim não era surpresa: a caixa está vazia. Para preenchê-la, jogo nela outras caixas grandes, médias e pequenas, e fico a observar bestamente o resultado dessa ação. Não satisfeita, ocupo com papéis multicoloridos os espaços disponíveis deste volume. Vejo que tomou corpo de um joão-bobo inflável: basta uma clicada e tudo volta à forma original - totalmente vazio.

Mudo de parágrafo num esforço de ativar minhas ideias. Tento buscar as palavras certas, mas preciso correr e contê-las, antes que seja tarde demais. Então, resgato um ponto esquecido na frase, apago a vírgula depois do sujeito, acrescento aspas no texto alheio e sigo a regra ao retirar o trema onde não existe mais. Assim fico tranquila. Agora, me organizo para ajustar o que está solto. O tempo urge. Mudo o assunto ou sigo em frente? Acho melhor fechar a tela e ler o livro esquecido na mesa. Mas a curiosidade é mais forte e volto à caixa do presente (ou será do passado?).

Cuidadosamente, esvazio o embrulho para ver se algo mudou. Retiro um por um seu conteúdo, do jeito que fazia ao bisbilhotar o baú de trecos da vovó. Não há surpresas, o que busco não está aqui. Talvez as marcas das etiquetas me ocultem o óbvio. A caixa da vovó carecia de tecnologia para abri-la, mas era cheia de truques porque guardava um lugar, uma história. Cada objeto tinha um segredo que só ela sabia desvendá-lo. Com um simples, “era uma vez...” ela começava um conto que sempre terminava com um final feliz. Depois, a mesma história era contada adiante. Por que não descrever simplesmente o que havia no baú de trecos da vovó? Porque perdi a chave. O jeito que tenho é virar a caixa de cabeça para baixo e começar tudo de novo:

O relógio antigo na parede da sala há muito que parou à meia-noite. A casa dorme. Tem um embrulho sobre a mesa de jantar. Levanto e vou ver o que é. Descubro que tem um cartão preso à fita com um nome destacado em vermelho. Leio e concluo que o presente é meu. Abro-o abruptamente, sem cerimônia. É um livro e não tem título. Nessa hora os ponteiros do relógio da parede começam a girar no sentido contrário, como se o tempo quisesse voltar. De repente, ouço vovó gritar lá de dentro do quarto que “está na hora de dormir, crianças”. E todos nós vamos para cama pensando naquelas florestas escuras, onde tem uma fada e um príncipe que salvou uma princesinha...

Acordo com uma luz forte incidindo sobre um retrato de mulher. Ela tem um broche florido no peito e seu cabelo é amarrado em coque. A senhora sorri para mim, e eu retribuo estranhamente. Vejo pela janela que amanheceu o dia. Desço a escada sem fazer barulho, para que a casa permaneça em silêncio. O relógio da sala marca a hora certa: sete horas. Outra vez, olho para o lado esquerdo da escada e me dou conta de que o velho carrilhão alemão está funcionando normalmente. Ligo o computador antes de ferver a água do café. Espero um pouco, desvio a atenção para a mesa onde repousa o livro que me presentearam na noite anterior. Levo um susto: o exemplar agora tem título, “Caixa vazia”. Minhas mãos tremem de emoção e medo ao abri-lo. Na primeira página, estava escrito o seguinte: “Este é um livro vazio de histórias, porque não tem memória suficiente para contá-las. Pegue a chave que está no meio dele e abra o baú que deixei no porão da casa”. A mensagem não veio assinada. O mistério que envolve esse livro não está no conteúdo porque este não existe, mas na mensagem em si: a minha casa não tem porão e no meio do livro não há chave nenhuma. Que eu me lembre, a casa que tinha porão era a da vovó. Resta-me encontrar o caminho que me leve, de volta, até lá.

Eu me lembro de uma casa que ficava em rua de ladeira e podíamos ver, da janela, os bondes circulando na rua principal. Não era a casa mais suntuosa do bairro, mas concorria entre as mais bonitas. A fachada seguia o estilo colonial, de portas altas com sacadas que davam para o jardim. No salão, havia um pórtico que separava o espaço em dois: de um lado ficava a sala de visitas; do outro a sala de jantar. Os móveis eram escuros feitos em jacarandá legítimo. No canto da parede da sala de jantar, bem acima da cristaleira, ficava um quadro da Sagrada Família. Perto da porta principal pendia o relógio de carrilhão alemão. O acesso aos cinco quartos era por um corredor comprido que ligava este à sala. Parece exagero, mas não sobrava lugar nos quartos quando a família toda resolvia passar o final de semana por lá. Às crianças não faltava onde brincar, pois o quintal era grande e arborizado. Havia um balanço de corda na mangueira que, sem conflitos, dividíamos a vez com os primos. Mas o que mais atraía a curiosidade dos pequenos era o porão do velho casarão.

Era proibida a entrada de crianças naquele recinto escuro e frio. Lá os mais velhos jogavam objetos que não serviam mais para o uso da casa, como restos de obras, móveis quebrados e outras quinquilharias. Na verdade, a censura era feita por questão de segurança, para evitar acidentes. Entretanto, para alimentar o imaginário das crianças, vovó dizia que, no porão, havia um baú deixado pelo ex-morador – um fazendeiro esquisito, de hábitos estranhos. Diante da curiosidade dos netos, ela prosseguia: “Os antigos vizinhos contavam que, todos os dias, ele levava o baú para debaixo da mangueira e dele tirava um colar de pérolas. Depois, beijava-o, chorava e devolvia a jóia ao baú.” A satisfação da contadora de histórias era medir o interesse dos ouvintes através de perguntas que elucidassem aquele mistério. E cada criança dava a sua opinião, com aquele jeito inocente de quem realmente acreditava no que acabara de ouvir.

. Desperto de minhas lembranças ao ouvir o relógio da parede soar três vezes. O carrilhão marca meio-dia. Ouço uma voz feminina que grita: “o almoço está servido”. Desligo a telinha e volto ao livro que está aberto sobre a mesa. Ponho os óculos e me aproximo do presente para enxergá-lo melhor. A capa e a data confirmam que se trata de um exemplar muito antigo. Abro-o mais uma vez e vejo que, curiosamente, as páginas não estão mais em branco. Salvo tudo e vou almoçar.

Por Maria Oliveira

Publicado em Abril de 2010

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