segunda-feira, 22 de março de 2010

A rainha Elizabeth que há em nós

Como sou uma crítica da premissa de que “se é sucesso, tenho que assistir (ou ler)”, prefiro sempre esperar que os filmes badalados do cinema ou os livros mais bem-divulgados da estação caiam no esquecimento midiático para, enfim, analisar com olhos isentos o talento deste ou aquele indiscutível sucesso de público e crítica. Foi assim com os contemporâneos “O código Da Vinci”- que, sendo historiadora, abominei tanto livro quanto filme, pela falta absoluta de veracidade – “Tropa de elite” – que, admito, vi piratão e fiquei chocada pela ousadia nua e crua de um retrato tão direto e inquietante da realidade que nos cerca, e a despeito de um ou outro crítico torcendo o nariz para a violência e o palavreado chulo, é muito louvável o fato de mostrar como a classe dos bem-nascidos curte andar no fio da navalha social que os separa dos mal-nascidos – e, mais recentemente, os chamados oscarizáveis “ A rainha” e “Elizabeth- 1998”( a continuação chama-se “Elizabeth e a Era de Ouro”, atualmente em cartaz.) O primeiro aborda a reação da família real inglesa quando pega de surpresa pela morte trágica de sua arquiinimiga pública, a princesa Diana de Gales, em atuação excepcional e digna de uma nobre da atriz Hellen Mirren. E o segundo expõe justamente o passado remoto e digno de folhetim de novelista da Globo sobre a criação da fortaleza que é a monarquia inglesa.

Antes que nossos leitores pensem que já que tanto aprecio contar a história por trás dos fatos e se sintam enfadados crendo que terão que ler uma interminável narrativa sobre o quem-é-quem da família real inglesa (embora, confesso, em tempos de comemoração de 200 anos da chegada da corte real portuguesa ao Brasil e suas histórias e fuxicos, os fuxicos britânicos fariam corar o “rei da portelinha” global, Juvenal Antena, e de longe as peripécias da corte britânica são mais interessantes do que as de Carlota Joaquina e Cia.).

Vou resumir o que tanto me fascinou nestes dois filmes perfeitos em suas caracterizações: O fato de saber o valor que uma mulher pode ter, mesmo sem ser um estereótipo de beleza ou apelar para truques da sedução a fim de se manter em posição digna na sociedade. Vamos ser sinceras. Mesmo que lady Di seja lembrada como uma mulher sofredora, excelente mãe e um ser humano digno dos funerais que teve, louvando a grandiosidade de seu caráter, a sogra dela é um exemplo de outras raras qualidades humanas que pouco evidenciamos em tempos de muita liberdade, muita igualdade e muito pouco respeito às mulheres – isto, em parte, devido à muitas posições adotadas e difíceis de manutenção. Ou vocês acham simples em, sendo menina e membro de uma família real, você saber desde pequena que terá de manter a aura de respeitabilidade, evitar namorar quem você queira (impossível nos tempos atuais! Como não escolhermos nossos eleitos?), evitar alguns amigos, que sua imagem desde nova deve valer muito mais que 2 mil palavras e sua vida será constantemente ditada pelas normas e regras de um sistema que já existia quase 4 séculos antes de você? Acham simples ser assunto dos pubs, bares, esquinas, casamentos, tema de piada freqüente aos 4 cantos do mundo, motivo de pauta dos periódicos ingleses e de todos aqueles que atentamente aguardam as próximas agruras pelas quais sua família vai passar, para estourar as vendagens às custas de sua dor e desespero. Isto quando a vergonha não a toma por completo?




Admira-me a seriedade e austeridade de Elizabeth, a atual, que, quando comparada à sua antepassada do outro filme que citei, em um tempo onde palavras forjavam um caráter e um aperto de mãos selava ou acordos de paz, ou guerras, em uma distante Inglaterra do século XVI, é um exemplo de disciplina e aplicação de como- viver- a-vida- que-não-se-quer e assim mesmo ser você mesma. Pois ouro e diamantes, a despeito de inúmeras canções ao redor do mundo, não bastam ao ser humano, que dirá às mulheres. Nós queremos mais, queremos calor, queremos amor, queremos respeito, queremos a admiração de críticos sinceros.

Sua antepassada, a ruiva e ambígua Elizabeth I, magistralmente interpretada pela atriz Cate Blanchet, também não teve vida fácil. Rejeitada pelo pai Henrique VIII ao nascer por não ser um varão, viu a mãe ser alvo de uma astuta trama para morrer decapitada e poder abrir espaço legítimo para futuras madrastas.
 
Foi sucessivamente rechaçada pela irmã mais velha, teve que se deparar aos 14 anos com a responsabilidade de ser apontada como uma leviana, por ceder aos caprichos de um cunhado devasso (naquela época, não existia pedofilia, tá? Dormir com crianças podia ser ou imposição de um poder político ou uma maneira de se conseguir, o quanto antes, um herdeiro, no caso de meninas) e ainda teve que aturar, depois que assumiu o poder aos 25 anos, sucessivos ataques às suas escolhas pessoais. Mas impôs sua marca ao mundo antigo como a rainha mais poderosa e vitoriosa da Inglaterra, tanto que em seu período de 45 anos de poder, o País viveu os chamados “anos de ouro”- e, mesmo assim, isto não a impediu de receber a alcunha de “rainha virgem”, já que nunca permitiu que alguma desventura amorosa sua interferisse em sua vida e jamais se casou, por considerar os homens “tolos, fracos e irresponsáveis” (Freud facilmente veria nela um complexo de Electra muito mal-resolvido).

Mas, quer saber? Toda Hilary Clinton que há em nós (e nem adianta me dizer que nunca perdoou um canalha bobalhão que tenha te traído, e nem venha me dizer que ela tinha ambições políticas, porque quem já foi traída sabe como isto é ruim, que dirá tendo a mídia atenta e amiga detalhando e repetindo à exaustão, os detalhes sórdidos da traição, e te elevando à categoria de primeira-otária – e isto, amigo, não vale o cargo de senadora nem de presidente, penso eu) queria um pouco da frieza da Beth atual e da autonomia da Beth do passado.

Mas aí algum leitor atento irá dizer: as convenções não permanecem as mesmas? Uma teve mais autonomia que a outra? Sim, já que Gutemberg surgiu antes dela. Mas a mídia só viria muito tempo depois, ajudando a corar a velha dama com notícias sobre os filhos fanfarrões, as cunhadas assanhadinhas (eu diria mais independentes) e os netos sem muita referência familiar. E, a esta altura, todos se perguntam: e o que me leva a crer que eu gostaria de ser como a sogra da doce Diana? Simples: nós já vivemos querendo ser outra coisa o tempo todo (as academias e clínicas estéticas não me deixam mentir, isto sem contar as outras exposições absurdas a que certas mulheres hoje se submetem para tentar adquirir “respeito” e marcar seu território). Nós também defendemos coisas nas quais desacreditamos, mas precisamos as defender para muitas vezes adquirir credibilidade (tá, a maioria fez faculdade e trabalha feito uma workaholic, mas quem nunca teve, depois de um dia exaustivo, o mais singelo desejo de apenas ser a mulherzinha da casa? Cozinhar, namorar e desejar coisas prosaicas como aprender a nova receita sensação de frango?) e nós constantemente temos confrontos desleais perante a família, o ambiente de trabalho ou mesmo outro ambiente qualquer, onde somos expostas em nossas fragilidades mais sutis.

Quando eu vi Elizabeth de Windsor, na tela da minha TV, exposta às críticas e tendo toda uma sociedade a execrando por ser apenas ela mesma, muito me surpreendeu que, no fim, ela acabou por contornar tudo com muita sobriedade e ainda conseguir manter a lealdade da mesma sociedade que a ironiza, mas não vive sem ela, e está, literalmente, ajoelhada a seus pés. E mesmo que alguém levante a mão e diga que não deseja coisas simples como a rainha Elizabeth, em seu íntimo, também deve desejar, pense nas admiráveis mulheres que como ela, e sua antepassada, ajudaram a tornar a história mundial mais palatável, em um mundo pautado por uma desigualdade de gêneros indiscutível.

Por Fernanda Barbosa

Publicado em Março de 2008

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