segunda-feira, 22 de março de 2010

Recém-casados

Antes de me casar, arriscava alguns quitutes na cozinha com a pura intenção de impressionar o namorado. Consciente de que não tinha inclinação nenhuma para culinária, ao atrelar os laços matrimoniais roubei, da mamãe, o livro da Helena Sangirardi, tido por ela como sua bíblia de receitas memoráveis. Mais tarde, confessei-lhe, envergonhada, o meu delito e, por castigo, só aprendi a fazer uns “pãezinhos do Jorge”: uma receita simples de biscoito que levava farinha de trigo, leite, ovo e tinha gosto de nada. Pegava dicas daqui e dali com minhas irmãs e cunhadas e, aos poucos, fui me aperfeiçoando nos beliscos e desafio quem soubesse fazer pastinha de atum melhor do que eu. Não se trata de uma receita chic, mas passada na torradinha pode acompanhar qualquer bebida. Com esse cardápio, iniciava minha vida de anfitriã, sofisticando cada vez mais nas entradas, com receio de esbarrar nas eminentes “bandeiras” dos recém-casados.

Passado o período da lua de mel, cujo isolamento social era comum naqueles idos anos 70, meu marido veio com a notícia de que receberíamos, em breve, a visita de certo cliente dele. Viria com a esposa e aproveitaria a oportunidade para nos trazer o presente de casamento atrasado. Eu não os conhecia, mas não tive a menor curiosidade de me informar a respeito, o que foi um erro imperdoável. Depois de muitas tentativas frustradas do cliente para marcar a visita, esta ficou acertada para um sábado. No dia combinado, preparei as ditas pastinhas, coloquei vinho na geladeira, vesti meu macacão jeans com blusa estampada por baixo, caprichei nas trancinhas no alto da cabeça, deixei o resto do cabelo solto até a cintura e completei o visual calçando aqueles tamancos fechados na frente, meio holandeses. Meu marido simplesmente vestiu uma bermuda jeans, blusão de tergal quadriculado e sapatos esportivos sem meias.

Com uma precisão britânica, o casal de meia idade chegara às sete da noite como havíamos combinado. Ao recebê-los, um misto de surpresa e constrangimento pairou no ar. Pelo gradil do portão, inevitavelmente cada um examinava o outro da cabeça aos pés, sem que escapasse o mais sutil detalhe da roupa. Diferentemente dos donos da casa, os visitantes estavam impecavelmente bem-vestidos: o homem de terno e gravata e a mulher num belíssimo longo, estilo madrinha de casamento. Foi difícil conter o riso ao olhar a cara do meu marido que, estático, não sabia se os convidava para entrar ou se indicava a Igreja Nossa Senhora do Loreto, bem ali pertinho, caso tivessem errado o endereço da festa. Passados os primeiros minutos de mútua estupefação, os visitantes nos acompanharam hesitantes, sob o flamboyant florido de vermelho, até chegarem à varanda, e logo à sala.

Sentadas lado-a lado, confesso que foi difícil engrenar o papo com a distinta senhora, cujos modos exageradamente formais me impediam de evoluir o assunto. Já entre os homens havia uma relação de confiança médico-paciente, que ajudou muito na engrenagem da conversa. Assim, eles discorriam acerca de política e saúde com naturalidade invejável. Eles falavam sobre o crescimento econômico do Brasil daquela década, conhecido por “Milagre Brasileiro”, com o mesmo entusiasmo que festejavam o sucesso da cura do problema urológico do simpático senhor.

Após os comensais mostrei-lhes a casa, como era de costume. Falei sobre moda e música, profissão e decoração, previsão do tempo e previsão para ter filhos. Enfim, fiz das tripas coração para alimentar a conversa. Infelizmente, a elegante senhora só evocava um trrisssste...... Sim, esta era a palavra carro-chefe que a mulher proferia sonoramente e com sotaque de gente requintada.

Trissssste o quê? Seriam minhas roupas trrriiiistes? Duvido. Naquele tempo era tudo muito floral, colorido da cabeça aos pés, bem no estilo Laura Asheley. Minha casa era trissssteee? De jeito nenhum... Os casais se esmeravam no revestimento do ambiente que em geral eram acarpetados e aconchegantes, ideais para climatizar o amor. Na decoração, a arte pop invadia nossas vidas e produtos coloridos, como copos de acrílico, eram os preferidos dos designers. Neles eu servia coca-cola sob o olhar curioso da madame, enquanto seu marido tomava whisky, cuja marca era estampada no copo. Minha conversa era trisssste? Com certeza não. Falar sobre alunos quando se tem a profissão por ideal e vocação, só poderia despertar bons sentimentos. A música daquele tempo era triissssste? Tem dó! Suas letras evocavam a bandeira do sexo e da paz e o romantismo em voga se manifestava nos mínimos “Detalhes” na voz de Roberto Carlos.

Então o que era triiiisssste? Talvez a frustração da senhora, que se preparou toda para um banquete na casa do Doutor e, ao invés disso, serviram-na atum à moda americana em bandeja de acrílico. Trissste foi ela não ter percebido que a contestação de costumes daquele tempo abrangia também a alimentação, que deixava de assumir um papel central na vida familiar e doméstica após a invasão de produtos industrializados. Fáceis de preparar, os enlatados eram bem-vindos porque diminuíram o tempo e o trabalho no preparo dos comensais. O papo com amigos era o melhor cardápio da época.

Quanto ao presente de casamento atrasado, o casal visitante foi de um gosto indiscutível. Ganhamos um abajour lindíssimo de cúpula de cristal com suporte em prata. A peça ornamentava a cabeceira da nossa cama, mas, tempos depois, quebrou-se em conseqüência de uma brincadeira de nossos três filhos. Isso é que foi trissssste!

Por Maria Oliveira
 
Publicado em Fevereiro de 2008

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