sábado, 20 de março de 2010
Carta ao Betinho,
irmão do Henfil, e de tanta gente que partiu...
Caro Herbert, ou melhor, cá para nós, Betinho. Como tenho um canal aberto e direto, costumo conversar com pessoas simpáticas (e antipáticas também, diga-se de passagem) que já partiram para o melhor dos mundos (e que não é por aqui, certamente) resolvi encerrar minha participação este ano neste modesto projeto de site jornalístico com uma carta aberta à você e aos leitores bacaninhas que fazem parte do seleto grupo que nos lê.
Caro Herbert, ou melhor, cá para nós, Betinho. Como tenho um canal aberto e direto, costumo conversar com pessoas simpáticas (e antipáticas também, diga-se de passagem) que já partiram para o melhor dos mundos (e que não é por aqui, certamente) resolvi encerrar minha participação este ano neste modesto projeto de site jornalístico com uma carta aberta à você e aos leitores bacaninhas que fazem parte do seleto grupo que nos lê.
Por que você? Bem, eu discordei da minha chefa, mas o “Natal sem Fome” que você criou em 1993, de modo engajado e indiscutivelmente generoso ainda é ouvido cada fim de ano desde que você partiu e não comanda mais as campanhas dele. Desde o distante ano de 1997. Mas aí percebi que seria excelente chance de ligar três momentos únicos, o ano de criação do projeto, o ano de quando já não o comandaria mais, e os dias de hoje. Aí, mandaria a missiva para você, que em vida foi sujeito lúcido e batalhador. Você iria refletir comigo se tem alguma coisa diferente e se algo mudou radicalmente desde então... Vamos lá?
Comecemos pela tão pouco querida CPMF, lembra? Tudo começou em 1993, no governo de seu conterrâneo Itamar Franco – mineiro como você, mas não totalmente autêntico, no mau sentido mesmo (já que, além de tudo, é baiano). Quando se criou o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira, que foi suspenso por uma ação direta de inconstitucionalidade, mas voltou a ser cobrado em 1994 e, em 1996 virou a CPMF, com alíquota de 0,2%, para financiar a saúde, graças ao prestígio do cardiologista Adib Jatene. O que dizer de nosso amigo presidente (soube que vocês também foram sensivelmente chegados) que hoje esbraveja que quem acabou com a CPMF (óbvio, caro presidente, que acabar com ela não foi com a intenção de ajudar ao povo, foi de sacanear (sic) você) nunca usou o SUS. Aí, caro Betinho, eu te pergunto: ele usou? Usou muito, para valer? Do tipo que vive dependendo da boa vontade de médico para tudo na rede pública – e olha que médico de rede pública é concursado, ninguém obriga o cara a entrar, não, mas ele, como outra classe desesperada e desprivilegiada, da qual também faço parte, a dos professores, faz a droga do concurso só para ter a tal estabilidade do serviço público, e aí, matrícula em punho, esbraveja que ganha mal, trabalha mal, que ninguém sabe o que é cursar tanto tempo de faculdade e ganhar uma miséria – eu me pergunto, se sabia antes da porcaria que era? Que utopia é esta de achar que você, JUSTAMENTE VOCÊ vai entrar e junto com as pessoas admitidas junto com você, vai modificar o panorama deprimente fazendo greve, faltando a plantão, despejando a verborragia de anos e anos de academicismo com gente que sequer vai fazer parte deste seleto grupo? O Lula, bem, foi miserável, mas você já sabe disto, só que ele pulou de ter acesso a rede pública de saúde ainda não inflada pela população crescente e por políticas eleitoreiras (entre as décadas de 40 e 70) até ao nível de plano de saúde pago... Ou você acha que dona Marisa Letícia teve todos os seus filhos em hospital público, hein?hein? Ai, caro amigo, será hipocrisia este discurso de ofensa ao povo brasileiro pelo fim do imposto? Sei não, soa tão esqusito... Mas você criou seu “Natal sem fome” neste ano e sequer adivinharia que um dia a tal da IPMF iria dar tanto bafafá.
Você faleceu 4 anos mais tarde, vítima de complicações decorrentes da AIDS (uma expressão médica ajeitadinha para milhões de coisas que possam levar um indivíduo com a imunidade afetada pela AIDS a perecer). E o ano de 1997 se comoveu, ao perceber que AIDS não era “só” doença de gente promíscua e sexualmente ativa e ambivalente... E quer mais uma deste ano? Seu colega sociólogo e ex-perseguido político, o Fernando Henrique (daí de cima você consegue vê-lo? Aqui a gente só lê declarações dele esporádicas na imprensa... a última foi pernóstica e desnecessária dizendo que seu sucessor fala mal o português e incentiva o erro lingüístico... Cá entre nós, Herbert, em um país que há anos se ganham milhões sem precisar de doutorado ou mesmo falar uma língua bem, mesmo que seja a sua, soou abusivo e meio idiota isto, não acha?) Ahn! Nem te conto: quando você partia, as Spice Girls, um grupo dançante de meninas bem-intencionadas musicalmente surgia, e, olha só que coincidência! Dez anos depois, após uns anos de ostracismo pessoal das componentes do grupo, ressurgiram para tentar a fama mais uma vez.
Bem, que comparações mais podemos suscitar? A violência era menor? Talvez fosse mais mascarada pela mídia, que ainda não conseguia vender tanto com a exposição da miséria alheia – outra hipocrisia, e vamos ver se você concorda: antes, consumíamos mais a tragédia internacional do que a nossa própria, mas agora que tudo chegou a um patamar absurdamente irreal de violência diária, vamos de tragédia brasileira mesmo – a fome existia e ainda existe até porque há um aumento malthusiano da população, brasileira em particular, e que nos leva a repensar como controlar a natalidade, e não como alimentar tantas bocas, apenas. Já sei, minha chefa já deve estar se roendo de raiva e dizendo: “mas cadê ela falando do Betinho e do Natal sem fome?” Chefinha, vou já já terminar e concluir, certamente com a anuência de meu amigo Betinho.
A iniciativa foi excelente, a motivação que ele teve foi única, mas infelizmente as pessoas no Brasil nem sempre querem ajudar de modo desprendido. E me perdoem aquelas que realmente dão o que não tem para ajudar a quem precisa. Aqui, sempre há um abatimento fiscal, um ganho ou financeiro, ou pessoal, por trás de um “natal sem fome”, uma “páscoa com alimento”, um “inverno solidário”... Até porque quem sente fome, sente no natal, no ano novo, no carnaval, em todos os outros dias também. Ser generoso em doses sazonais é uma remissão de pecados que não me cai bem pela goela, nunca caiu. Claro que a iniciativa é bonita, tem valor pelo ato desprendido, mas não basta. Você não acha, Herbert, que apenas queria chamar a atenção para um fato social gravíssimo e daí gerar e suscitar outras discussões e debates em torno do assunto? “Mas Fernanda, como você está pessimista! E as diversas iniciativas privadas neste sentido que andam aparecendo em comunidades carentes e fazendo a diferença em locais desprovidos de assistência?”
É pouco ainda, gente... Ainda muito pouco. São 14 anos do “Natal sem fome”, mas ainda se morre de fome no Brasil de todos nós. Ei, Betinho, que tal no ano que vem, que é bissexto, nós insistirmos mais um pouco e, além de aumentar a caridade alheia, também incrementarmos a seriedade alheia para passar os recursos certos a quem precisa?Vamos tentar?
Por Fernanda Barbosa
Publicado em Dezembro de 2007
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