sábado, 20 de março de 2010

ABIOSE*

Difícil saber o que gerou mais desconforto com relação ao filme “Tropa de elite”, do diretor José Padilha, baseado no livro “Elite da Tropa”, de autoria de ex-integrantes do BOPE (Batalhão de Operações Especiais/ PMRJ) e quem tem no elenco quase de desconhecidos o ator-sensação de sua geração - “ai, que delícia de maldade, Olavo!”- Wagner Moura (em atuação excepcional): se a enxurrada de cópias pirateadas já divulgadas dois meses antes do filme estrear (coisa que, cá para nós, em tempos de pouca ética e muita Internet não era difícil de prever que aconteceria), se a polêmica suscitada justamente pela demonstração farta de como agem os “homens de preto “da Polícia carioca, ou se a inquietante sensação de que, como diria Bertold Brecht, “Realmente, vivemos tempos muito sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.” O fim dos tempos não está chegando...chegou faz tempo acompanhado da abertura...abertura política, abertura de mentes, abertura de espaços, abertura de imprensa, abertura do enorme fosso que separa o bom-senso, a ética e a sensibilidade do resto dos seres humanos.

Em outras décadas, um livro e um filme como este, que demonstra cruamente como a nossa polícia adestra seus cães de guerra e a relação mais íntima entre poder paralelo, comunidades carentes e segurança pública, seria censurado veemente e irrestritamente – dava cadeia até, isso sem comentar o resto. Mas vivemos em demoscracia, assim, com esse “s” incômodo e errôneo mesmo, que nos lembra que este país está mais assemelhado a casa de praia do vade-retro do que de pátria abençoada por Deus, que certamente está considerando se faz com este nosso país como fez com Sodoma e Gomorra, manda tudo pelos ares para recomeçar novamente, ou se pede para o Gilberto Braga escrever a próxima trama da novela do mundo e retocar o perfil da canalhice que por aqui habita.... bem, voltemos ao filme.

É bom realmente! Eu particularmente ainda não vi, não por nenhum tipo de consciência ética que me impeça, mas absoluta falta de tempo, uns amigos já me cederam uma cópia pirata há semanas. E pelo que ouvi e li, pedindo escusas ao mestre Nelson Rodrigues, esta unanimidade não está sendo burra. Este Wagner Moura é sensacional mesmo, visceral em tudo que realiza, e junto com os irmãos Mello, Selton e Dalton, é um dos melhores deste eixo 30-40 anos do elenco global masculino, que invade nossas casas nos últimos anos. Há também alguns talentos que foram descobertos, e, garantem-me quem viu o piratão, ops, caveirão, o elenco todo está afinadíssimo. A maioria de amigos que já viram os homens de preto em ação afirma que “aquela chapa é quente mesmo” e outros tantos que também já ouviram falar, ou conviveram com alguém desta força especial, que “o treinamento é aquilo ali mesmo pra pior”... eu própria tive affair com tenente PM que diversas vezes contou, horrorizado, como alguns conhecidos relatavam o treinamento mondo cane do BOPE. O condicionamento adestrava os homens a tal ponto que eles passavam a não sentir mais nem pena de criancinha ou velhinha em leito de hospital, mas é claro, há de se considerar que pessoas são pessoas e mesmo os mais dedicados e disciplinados combatentes também se sensibilizam em algumas raras sensações déja vu de humanidade... todos eles, afinal, foram crianças e também brincaram de bolinha de gude.

Mas por que outras épocas, e qual o sentido de sua analogia, ô jornalista? Eu que eu realmente acredito que, surpreenda neste filme e em quantos mais vierem é que agora se pode retratar a violência dos meios de segurança, pública, privada, das forças armadas, dos criminosos e correlatos, e ninguém mais se torna nauseado, enojado... e aquelas frases de efeito contundentes sobre os direitos humanos, que repetidas ad nauseum pelo povo em geral ficavam assim - “ direitos humanos só dos bandidos, dos cidadãos, nada...”- até elas se tornaram um bordão tolinho e entojadinho perto da facilidade com que os seres humanos (estes seres com quem gosto de conviver cada vez menos, e cada vez mais me apaixono por minhas gatas- ave, Cora Ronái!) gostam de consumir ávidos as tragédias do cotidiano, para depois de três ou quatro cervejas tomadas concluírem que o Brasil “é uma vergonha, a culpa é do Presidente, e deste bando de político safado (sic)”, irem para casa dormir, desejando que amanhã dê praia, ou que o patrão falte, ou que seu time ganhe no jogo da quinta rodada do brasileirão... isto é o que mais impressiona com relação às reações ao filme. Ninguém que eu considere, pernosticamente falando, “gabaritado” para criticar o treinamento à la Exército Brasileiro anos de Chumbo, ninguém em voz dissonante para dizer que aquilo ali não é uma solução para conduzir a questão de segurança ou insegurança no Rio de janeiro, que o cotidiano ali retratado é um cotidiano digno de treinamento para pitbulls reagirem a ataques de besta-feras. Não! Todo mundo resolveu ou comentar a enxurrada de cópias piratas, ou como o “Olavo é bom mesmo” ou como é assim, sim, nas favelas mais perigosas da cidade.

“Pede prá sair” indignação incontida, “pede prá sair”, brasileiro inconformado que vive no ostracismo, aliás, pede pra condenar ao real sentido grego de ostrakismós, latino ostracismu, a maioria destas pessoas que eu cheguei à conclusão, desanimada, que sofrem do título deste pretensioso artigo.

* Incapacidade para viver.

Por Fernanda Barbosa
 
Publicado em Setembro de 2007 

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